“Eu declaro que conheço Antonio Seresteiro, cigano, portador no CPF número tal, e a Constituição Federal diz que ele tem o direito de ir e vir sem ser molestado, tem o direito de exercer sua profissão sem ser molestado, e se alguém quiser impedi-lo, ele tem o direito de saber quem o está prendendo e por que está prendendo e, se estiver prendendo de maneira errada, fique sabendo que é crime de abuso de autoridade, e se tiver dúvidas, telefone para Luciano Mariz Maia. Meu telefone é este (número do telefone)”. Há pouco mais de 20 anos, essa foi a primeira versão de salvo conduto expedido por um membro do Ministério Público Federal na Paraíba (MPF/PB) para que um cigano, que sempre era abordado e detido pela polícia na fronteira entre os estados da Paraíba e Pernambuco, pudesse transitar livremente e exercer suas atividades comerciais.
Em 20 anos, muitas transformações ocorreram no mundo. O avanço tecnológico permitiu a globalização da internet e o surgimento das redes sociais virtuais que já provocaram revoluções políticas em vários países nessa dupla de décadas, mas ainda não conseguiram quebrar a discriminação e o preconceito contra os ciganos na pequena Condado, cidade com 6.587 habitantes (IBGE/2010), localizada no sertão da Paraíba, a 47,5 km de Patos e a 362km da capital João Pessoa.
É que 20 anos depois daquele primeiro salvo conduto dado pelo MPF a Antonio Seresteiro (uma “carta de referência”, como os ciganos costumam se referir ao documento), outra declaração similar foi expedida por um membro do MPF, em 2015, para Carlos Antonio Cavalcante, integrante do grupo cigano calon que se fixou em Condado na década de 50. Segundo Maria Jane Soares, casada com Carlos Antonio, o pedido pela “carta de referência” foi feito por causa da perseguição que os ciganos ainda sofrem. “A gente teme muito sair de casa. Até as nossas roupas [tradicionais] a gente não veste mais como vestia, que é para ninguém identificar que a gente é cigano”, relata. Ela dá um exemplo: “quando ocorre algum roubo e tem ciganos por perto, os ciganos são logo acusados pelo crime”.
24 de maio - Dia Nacional do Cigano
“Somos pessoas muito mal vistas na cidade. A gente sempre é visto com muita discriminação. O atendimento é zero por parte dos órgãos públicos. Não temos nenhum apoio, nenhuma ajuda”, relata Jane Soares. Ela é presidente da Associação Comunitária dos Ciganos de Condado/PB (Ascocic), uma associação cujo estatuto prevê atuação em âmbito regional, nacional e internacional. “Nossos ciganos moram em Condado desde 1952 e nunca foram pegos roubando, matando, estuprando, invadindo, mas esse preconceito é terrível. Eu acho que Condado é o município que mais discrimina o povo cigano, mas a gente é tudo natural de lá e tem dificuldade de se desapegar de lá. Mesmo que a gente precise viajar para buscar nosso pão, a gente volta para Condado”, explica a presidente da Ascocic.
Situações como essas de discriminação, preconceito, racismo institucional, intimidação e abuso de autoridade foram relatadas pelos ciganos durante duas audiências públicas promovidas pelo Ministério Público Federal, em Patos e Sousa, nos dias 29 e 30 de março de 2017. O objetivo das audiências foi articular uma rede de proteção aos direitos dessa minoria étnica. Membros do MPF e representantes de diversos órgãos públicos, nas esferas estadual e municipal, e também de entidades e conselhos, participaram das audiências.
Violação de direitos - A população cigana do município de Condado tem sido objeto de estudos antropológicos e, desde 2013, também é alvo do projeto de extensão de Assessoria Jurídica Popular, Direitos Humanos e Comunidades Tradicionais (Ajup), desenvolvido pelo curso de direito das Faculdades Integradas de Patos. A Ajup participou da audiência pública em Patos e entregou para o Ministério Público Federal diversos documentos, entre eles uma carta reivindicativa e um dossiê, no qual relata casos de violação de direitos dos ciganos ocorridos em Condado.
Intolerância - Um desses casos retrata a intolerância dos jovens não-ciganos para com os jovens ciganos no município. Para evitar confronto, a administração pública determinou horários específicos para os jovens usarem o campo de futebol. “Os jovens de lá não querem jogar com os nossos. Então, tem um dia dos ciganos jogarem separados dos não-ciganos”, conta Maria Jane Soares, presidente da Ascocic. Ocorre que em certa ocasião, os rapazes não-ciganos chegaram antes do horário determinado e, segundo o dossiê da Ajup, impediram os ciganos de utilizar o bebedouro público. “Naquele bebedouro os ciganos não bebem”, disseram. O caso acabou em confusão e um jovem não-cigano registrou uma queixa de lesão corporal contra os rapazes ciganos.
Posteriormente, o denunciante retirou a queixa, no entanto, conforme a Ajup, a autoridade policial insistiu em chamar os jovens ciganos e aplicar-lhes um “puxão de orelhas” para não se envolverem em brigas. Para a Ajup, esse caso demonstra a necessidade das instituições estatais “refletirem sobre a função que o ordenamento jurídico e o Estado como um todo exercem na manutenção e perpetuação da discriminação racial aos povos ciganos”. Segundo a presidente da Ascocic, os jovens ciganos de Condado são vistos com maus olhos e são tratados pela polícia como adultos, “como um nada, como uma pessoa com quem eles podem fazer tudo, são tratados sem respeito”, denuncia.
Portas fechadas - Outro aspecto da discriminação ocorre na busca por uma vaga no mercado de trabalho. Jane Soares relata que já procurou emprego para os jovens ciganos em Condado e em diversas cidades da Paraíba. “Eles me pedem ‘tia, arruma um emprego para mim’”, conta a presidente da associação. “Já pedi tanto aos supermercados para darem emprego aos nossos jovens, uma chance, porque eles são jovens que têm responsabilidade, têm nome limpo, mas a dificuldade é máxima para um cigano arrumar um emprego”. Os próprios jovens também procuram eles mesmos conseguir um emprego, mas não são atendidos, relata.
As portas do mercado de trabalho também se fecham para os ciganos em Sousa, no sertão paraibano, cidade que registra a maior população cigana do estado. É o que relata o estudante universitário João Dias Pereira. Ele cursa Sociologia e tem previsão de colar grau no final do primeiro semestre de 2018. João Dias conta que no município várias fábricas estão sendo abertas. “Eu fiz o currículo e fui entregar ao rapaz. Ele olhou meu currículo e disse ‘olha, o seu currículo é bom, só que aqui não dá para você trabalhar e vou até te dar um conselho: quando você for fazer um currículo, não coloque que mora nessa rua, nem que você é cigano”, relembra. “No momento eu me senti muito chateado, mas, por educação, eu não discuti com ele e vi que ele tinha um pouco de razão, porque qualquer um de nós aqui que for procurar emprego em Sousa, não vai arrumar emprego dizendo que é cigano”, afirma resignado.
O estudante tem uma explicação para a discriminação atual: a mesma situação de racismo que os ciganos encontravam há 30 anos não mudou. “Por isso que eu digo: se quiser sustentar um filho, ter uma estrutura melhor, se quiser arrumar um emprego, ele [o cigano] vai ter que fugir da sua história étnica. Tem que dizer que não é cigano”, reconhece, mas ressalta que ele próprio não foge da etnicidade: “Se um cigano for como eu, se tiver a minha personalidade, com certeza ele não vai deixar de dizer a identidade dele”.
João Dias argumenta que todas as pessoas são iguais e o que diferencia uma pessoa de outra são apenas questões históricas, culturais e territoriais. Mas, conforme relata o estudante, em todos esses anos que os ciganos se fixaram em Sousa, nunca houve nenhuma ação de inclusão dos ciganos no mercado de trabalho do município, nenhuma melhoria estrutural dentro da comunidade. Ele pergunta: “você acha certo um ser humano morar num local desse?”, enquanto aponta o esgoto a céu aberto, as casas de taipa e chão batido e muito lixo espalhado por toda parte.
Leitura de mão - Para sobreviver, os ciganos ainda realizam troca e venda. Antigamente, os ciganos de Condado trocavam animais, selas, barracas. “Era um porco, um bode, uma galinha”, conta Jane Soares. “Hoje, quem tem carro [troca] é carro, quem tem moto troca moto, sobrevive de negócio, como começou o mundo”, explica. Já as mulheres conseguem algum dinheiro lendo mão e jogando cartas. Muitos também pedem esmolas para comer. A presidente da Ascocic lembra que as mulheres ciganas eram presas na Paraíba por praticarem a leitura de mãos. “E ainda hoje são”, acrescenta. “Eu já fui presa por isso. Minha mãe também. Já fomos colocadas para fora de cidades na Paraíba. Eles não aceitam, chamam a gente de vagabunda. Então, por que não dão emprego? Por que não dão espaço? Por que não nos dão oportunidade (de trabalhar)?, questiona.
Maria Jane Soares também é integrante do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial da Paraíba e da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. “De 2013 para cá eu comecei a andar em Brasília e lá eu fiquei sabendo que a leitura de mãos e a jogada de cartas são a nossa cultura e a gente não pode deixar morrer”, explica.
"Até hoje a minha mãe sustenta a gente. Somos cinco filhos e a única que vive com ela sou eu. Ela pagou meus estudos, meu curso de Técnico em Enfermagem, lendo mão. Não tenho vergonha de dizer, porque foi com a cultura que ela criou a gente, deu alimento e educação ", conta Janete Soares, irmã de Jane.
Janete tem um filho de dez anos e sobrevive do Bolsa Família. Apesar da formação técnica, ela não conseguiu emprego e afirma que sofre muito preconceito. “Estagiei nos dois postos médicos da cidade, pedi, até implorei que me dessem uma chance para eu mostrar meu trabalho como técnica de enfermagem, mas a oportunidade foi dada a outros. Até agora eu ainda não pude exercer minha profissão”, diz em tom ressentido. “Eu sou condadense. Só não fiz nascer aqui, mas me criei aqui. A gente se sente muito inútil, porque estuda, vê as outras pessoas tendo oportunidade e você não. Por quê?”, pergunta e acrescenta: “Tenho muita fé em Deus que nós vamos conseguir cada um ter seu emprego, sua casinha para morar e ter com o que nos sustentar. A gente está nessa luta, batalhando”.
Não é crime - Não existe nenhum enquadramento penal para leitura de mão e leitura de cartas. Já houve no ordenamento jurídico brasileiro uma contravenção penal que significava exploração da fé pública, mas esse dispositivo legal foi revogado e não há mais lei criminalizando a atividade da credulidade pública. “Na ausência da contravenção penal, os agentes da lei ficam tentando enquadrar a leitura de mão e de cartas como se fossem estelionato ou extorsão, mas enquanto o legislador anterior considerava uma infração leve, bem menos grave que um crime, o legislador contemporâneo entendeu que nem contravenção a leitura de mão deve ser considerada. A lei respeita as culturas e as práticas culturais, entre as quais a leitura de mão e de carta”, ensina o subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, coordenador da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, órgão interno do Ministério Público Federal que trata especificamente dos temas relacionados aos grupos que têm em comum um modo de vida tradicional distinto da sociedade nacional majoritária, como, indígenas, quilombolas, comunidades extrativistas, comunidades ribeirinhas e ciganos.
Na audiência pública em Patos, Luciano Maia enfatizou a necessidade de todos aprenderem a ver os ciganos como pessoas humanas concretas. “Ciganos têm nome e sobrenome”, reiterou, complementando que o destino dos ciganos está “nas nossas mãos, nas mãos dos prefeitos, dos gestores públicos e o que os ciganos esperam é ser tratados com respeito”. O subprocurador defendeu que o Programa Minha Casa Minha Vida também tem que ser para os ciganos e os programas de educação têm que ter a inclusão dos ciganos.
Em Sousa, o subprocurador voltou a ressaltar a importância do tratamento sem discriminação, e exemplificou relatando como foi o seu primeiro contato com os ciganos no município. Há 26 anos, Luciano Maia recebeu um convite do então senador Antonio Mariz para conhecer os ciganos de Sousa. (Mariz tinha sido prefeito de Sousa entre 1963 e 1969). Quando Maia chegou para conversar com os ciganos, curioso, questionou: "eu não vi nada que Mariz fez por vocês, como é que vocês podem gostar tanto dele?" A resposta que ouviu, nunca mais esqueceu: "Mariz trata nós como gente".
mpf
Fonte: Repórter PB
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